Enquanto os Estados Unidos brigam pela a hegemonia tecnológica[1], a China tem se mostrado para o mundo como a grande autora da próxima e breve revolução: a da inteligência artificial. A tensão entre as duas potências gira em torno, principalmente, de tecnologia como por exemplo, a produção e implementação da conexão 5G, inteligência artificial e até mesmo tecnologia militar. As duas potências mundiais disputam interesses econômicos com o foco na supremacia geopolítica mundial, sendo certo que ambos países têm adotado medidas protecionistas, por temer perder sua supremacia. Uma verdadeira guerra fria tecnológica.
A relação diplomática entre as duas potências mundiais tem se estremecido significativamente desde 2018, sobretudo devido às imposições tarifárias sobre produtos importados, criando uma intensa barreira comercial seguida de acusações de espionagem e manipulação de câmbio. A maior preocupação dos EUA, certamente, é continuar ditando as regras globais, assim como fizeram nos últimos 75 anos de superpotência.
Monica Bruckmann, professora de Ciência Política da UFRJ explica que a causa dessa tensão com a China vem de muito antes de 2018, sendo iniciada no início do século com os EUA vendo sua economia se debilitar, na medida em que se envolviam em guerras, tal como a do Afeganistão, assim, acumulando uma das maiores dívidas públicas do mundo:
“A causa fundamental foram os orçamentos sucessivos para manter essas guerras. E o que a gente vê é que ao mesmo tempo em que a economia dos Estados Unidos se debilita, a economia chinesa se fortalece e as taxas de crescimento da China têm causado um novo processo muito interessante na economia mundial, de centralidade na Ásia”[2]
Dentre as consequências deste cenário repleto de ameaças e quebra de acordos, destacam-se desde quedas nos índices das bolsas de valores a, até mesmo, segundo o relatório de julho de 2020 do Fundo Monetário Internacional – FMI, uma desaceleração acentuada nas economias emergentes da Ásia. “Cadeias de fornecimento de tecnologia global foram ameaçadas pela possibilidade de os Estados Unidos impõem sanções.”[3]
Além disso, causa ameaças à ordem internacional de comércio o não cumprimento de regras estabelecidas pela OMS, o que influencia no aparecimento de novas conjunturas comerciais dividindo o mundo em dois lados: pró-China, pró- EUA, bem como reduz o PIB e o crescimento econômico mundial, provoca desemprego e queda na produtividade tanto na indústria, quanto no comércio e na prestação de serviços. Uma verdadeira instabilidade econômica com potencial de gerar grandes recessões e ainda, a popularização de medidas protecionistas, reforçando a intolerância, preconceito e segregação entre países, entre muitas outras consequências negativas.
Inovações tecnológicas derivadas do 5G
Uma das principais consequências dessa disputa entre China e Estados Unidos, será o remodelamento do futuro da internet. O cenário atual conta com mais de 34 países do mundo já fazendo uso da tecnologia 5G como, por exemplo, China, EUA, Coreia do Sul, Arábia Saudita, Alemanha, Reino Unido, Emirados Árabes Unidos, Espanha, Taiwan entre muitos outros. É de salientar que o 5G não só conecta indivíduos em uma velocidade infinitamente superior que o 4G, mas sim todo um sistema: indo desde carros autônomos, máquinas, eletrodomésticos, drones, etc. Essa tecnologia proporciona uma melhor e maior conectividade, gera novos serviços e uma menor latência, que significa menor tempo de transmissão entre o ao vivo e o que é transmitido.
Essa conectividade permite criar, transformar e aumentar o número de cidades inteligentes com inúmeros dispositivos podendo se conectar mutuamente, enquanto o machine learning e a inteligência artificial permitem análises em tempo real para que os usuários possam tomar decisões. Isso porque, com o 5G, o número de aparelhos conectados por área possibilitará uma enorme ampliação da tendência mundial da “internet das coisas”. Com isso, haverá inúmeras possibilidades, cada vez mais inteligentes e conectadas, para residências, ruas, hospitais, comércios e indústrias.[4]
Apesar do 5G ainda estar em estágio inicial de implementação no mundo, a China não só lidera essa disputa através das empresas Huawei e ZTE – líderes mundiais em equipamentos de telecomunicação, como também, já está desenvolvendo uma tecnologia ainda mais moderna, com potencial de ser 10 vezes mais rápida que o 5G: o 6G. Em novembro de 2020, os chineses lançaram o primeiro satélite 6G para a órbita da Terra, tecnologia está sendo desenvolvida e tem previsão de ser implementada em 2030[5].
Enquanto isso, até 2019 os EUA precisavam recorrer a empresas estrangeiras para obter tal conectividade, pois ainda não tinham conseguido produzir o 5G americano. Em 2020, após sua criação, tiveram a velocidade de seu 5G avaliada abaixo das melhores médias mundiais, sendo apenas 2 vezes mais rápido que o 4G local[6].
Fatores de desconfiança internacional em relação ao 5G chinês
O 5G chinês tem sido bastante questionado no mundo todo, devido às críticas a respeito da atuação da empresa chinesa Huawei. As alegações giram em torno de sua atuação representar muito mais os interesses do governo chinês do que dela mesmo, sendo por sua vez uma companhia privada. Além disso, a principal empresa produtora de conexão 5G é acusada pelos EUA de roubo de dados de propriedade intelectual, dados pessoais, vigilância, etc.[7]
O debate já atravessou o mundo, fazendo com que diversos países optassem pela não adoção da tecnologia de quinta geração chinesa, e muitos dos que já adotavam acabassem por baní-la – é o caso do Reino Unido, França, Suécia, entre outros.
Esse receio mundial existe exatamente pelo fato dessa nova conectividade permitir uma integração total entre equipamentos e conexões, não sendo mais possível separar sistemas. Assim, na medida em que a empresa oferece tal tecnologia, é imprescindível para sua atuação a coleta, processamento, tratamento e tráfego não só de dados pessoais, mas também de dados do Estado. Nessa toada, a falta de transparência de como os dados são utilizados e armazenados na China é um dos grandes responsáveis pela desconfiança mundial do 5G chinês.
Disso ingerido, fica claro que um dos grandes desafios do governo chinês é procurar desassociar a forma com que esses dados são tratados tanto pelo governo, quanto por empresas chinesas da disputa geopolítica, fator que gera toda essa tensão entre os aplicativos chineses e a aplicação do 5G.
É importante ressaltar que não se tem certeza empírica a respeito das acusações atualmente feitas acerca das vulnerabilidades intrínsecas dos produtos, serviços, aplicativos e ferramentas chinesas. Por outro lado, o site Wikileaks[8], famoso por vazar documentos secretos, revelaram que a Agência de Segurança Nacional dos EUA – NSA, não só já invadiu o sistema da Huawei Estados Unidos, como também já grampeou o celular da então presidenta do Brasil Dilma Rousseff e da chanceler alemã Angela Merkel.
Dessa forma, enquanto ressalvas para se resguardar de invasões de sistemas por parte de agências de vigilância estrangeiras são extremamente pertinentes, medidas de proteção devem ser tomadas em relação a todos os possíveis fornecedores desses serviços. Como disse Min Jiang, CyberBRICS Fellow, “The perception of Huawei as an aggressor or victim may be in the eyes of the beholder.”[9]
A busca de maior legitimidade por parte do Governo Chinês e compatibilização com os ordenamentos jurídicos ocidentais
Desde a fase experimental de abertura da economia promovida por Deng Xiaoping, a China tem vivido tempos de descentralização do poder. Ricardo Geromel ressalta que “ao descentralizar a China transformou-se em um laboratório de reformas”[10]. O Professor da Fundação Getúlio Vargas, Evandro Menezes de Carvalho, destaca que o país tem feito um movimento na busca por maior legitimidade, implementando leis mais compatíveis com as leis ocidentais, através de sua “reforma constitucional, a fim de preparar o país para o futuro.”[11] E ainda, que tal medida é um avanço do estado de direito na China que representa um salto grande em seu quadro institucional e normativo.[12]
Para ilustrar o mencionado acima, o atual Secretário-Geral do Comitê Central do Partido Comunista da China, Xi Jinping, foi o primeiro a prometer lealdade à Constituição daquele país. Em sua posse, com a mão sobre a Carta Magna, disse que protegeria a autoridade da Constituição. Apesar de todo o sistema de vigilância e censura interno tendo uma rede chamada por muitos de “intranet” e não internet, o Império do Meio tem feito o movimento de tentativa de adequação às leis ocidentais pertinentes a esse tema, levando em consideração o Novo Código Civil Chinês[13]. Foram criadas também as leis de Criptografia e Cibersegurança[14].
Referidos dispositivos legais vêm trazendo à sociedade chinesa determinações a respeito dos direitos da pessoa humana, como à privacidade, proteção de dados pessoais, direitos da personalidade em geral em intensidade nunca antes vista por aquele povo.
Mais recentemente, como complemento dessas leis, em outubro de 2020, A China publicou um projeto de lei de Proteção de Informações Pessoais[15] (“PLPIP”), que passou por uma consulta pública sobre o seu texto, acompanhando a tendência global de ampliação social no debate legislativo. Em seu conteúdo, o PLPIP dispõe as definições de tratamento de dados, informações pessoais e informações pessoais sensíveis, salvaguarda os direitos de privacidade e autodeterminação informativa dos titulares, independentemente de serem estrangeiros ou chineses, e ainda promove fundamentos e bases legais que incluem não só atividades de tecnologia e informação como também qualquer produto ou serviço que use esses dados com fins lucrativos: O PLPIP introduz novas dimensões sobre a privacidade e proteção de dados na China.
Nesse cenário, mesmo que seja possível questionar se uma norma fundada num modelo legislativo que visa a proteção de direitos fundamentais e do Estado de Direito terá sucesso num país como a China, é inegável o avanço regulatório, e, porque não dizer, civilizatório, que a norma introduz no ordenamento chinês.
De fato, mesmo que seja possível afirmar que as disposições do PLPIP estão sujeitas a revisões e alterações, além de existirem questões doutrinárias e jurisprudenciais a serem sedimentadas no que tange à interpretação e à aplicação da norma, as empresas e grupos econômicos que já vêm buscando se adequar às disposições da LGPD e do RGPD possuem uma vantagem administrativa e operacional para efetivamente se adequar ao regulamento chinês, visto que o PLPIP sofreu forte influência do modelo europeu de proteção de dados pessoais. (DALESA, Pedro. 2020)
Conclusão
Os ataques e censuras provindos dessa guerra tecnológica mencionada têm levado a uma polarização no mundo inteiro. Enquanto os EUA tentam convencer o mundo a banir o 5G da Huawei e ZTE, a China avança democraticamente. Assim, de um lado, temos os EUA atuando no modelo de capitalismo de vigilância com o auxílio da NSA, de outro, os valores políticos e a mentalidade chinesa demonstram não agradar tanto assim o ocidente. Por isso, esse movimento de ampliação do Estado Democrático Chinês tem um papel essencial e estratégico no desenvolvimento econômico do país, levando em consideração que a China, na mesma medida em que é “cyber-ambiciosa”, acaba, por efeito colateral, sendo também “cyber-vulnerável”[16]. Em conclusão, essa transição traz ainda mais legitimidade e confiança no governo de Xi Jinping e, consequentemente, mais investimentos e insumos para o país.
[1] Oxford Analytica (2020), US-China rivalry looms over global 5G standards. Disponível em: <https://www.emerald.com/insight/content/doi/10.1108/OXAN-DB253974/full/html> Acesso em: 15 de junho de 2021.
[2] China e EUA: o que há por trás da maior disputa comercial do mundo? Disponível em: >https://www.brasildefato.com.br/2020/08/24/china-e-eua-o-que-ha-por-tras-da-maior-disputa-comercial-do-mundo< Acesso em 30 de junho de 2021.
[3] Guerra comercial: entenda as tensões entre China e EUA e as incertezas para a economia mundial. Disponível em: >https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/08/16/guerra-comercial-entenda-a-piora-das-tensoes-entre-china-e-eua-e-as-incertezas-para-a-economia-mundial.ghtml < Acesso em 30 de julho de 2021.
[4]Entenda o que é a tenologia 5G. Disponível em: <https://orlanoticias.com.br/entenda-o-que-e-a-tecnologia-5g/> Acesso em 30 de junho de 2021.
[5] China coloca em órbita o primeiro satélite com tecnologia 6G do mundo. Disponível em: >https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2020/11/10/china-coloca-em-orbita-o-primeiro-satelite-com-tecnologia-6g-do-mundo.ghtml< Acesso em 10 de junho de 2021.
[6] A Guerra da Internet Móvel. Disponível em: <https://www.uol.com.br/tilt/reportagens-especiais/a-guerra-pelo-5g/#page6> Acesso em 30 de junho de 2021.
[7] Disponível em: > https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48046249< Acesso em 18 de junho de 2021.
[8] https://wikileaks.org/ – Acesso em 30 de junho de 2021.
[9] “A perceção que a Huawei é agressora ou a vítima está nos olhos do observador.” (GRIFO NOSSO) U.S. Ban on Huawei: Superpowers’ Insecurities and Nightmares. Disponível em: <https://cyberbrics.info/u-s-ban-on-huawei-superpowers-insecurities-and-nightmares/> Acesso em 29 de junho de 2021.
[10] GEROMEL, Ricardo. O poder da China: o que você deve saber sobre o país que mais cresce em bilionários e unicórnios. São Paulo: Editora Gente, 2019. pag 276.
[11] “Se o direito chinês tiver a mesma velocidade nas transformações e eficiência nas realizações que se observou na economia chinesa nos últimos 40 anos, então o mundo verá surgir a construção de uma das maiores obras jurídicas feitas por um país na história recente”. CARVALHO MENEZES, Evandro.
[12]MENEZES DE CARVALHO, Evandro. A reforma constitucional e o avanço do estado de direito na China. 15 de março de 2018. Disponível em: <http://portuguese.people.com.cn/n3/2018/0315/c309814-9437450.html> Acesso em: 15 de junho de 2021.
[13] 中华人民共和国民法典. Adotado em 23 de maio de 2020 sendo vigente a partir de 1 de Janeiro de 2021.
[14] Entrada em vigor este ano, 2020, na China.
[15] PLPIP (个人信息保护法)
[16] AUSTIN, G. (2018). Cybersecurity in China: The next wave. Cham: Springer.; LINDSAY, J. (2014). The impact of China on cybersecurity: Fiction and friction. International Security, 39(3), 7-47.
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